Aqui está o último conto que publiquei.
Dia
fatal
*
Ninguém esperava tão trágico
acontecimento.
A pequena aldeia de
Fontearcadinha acordara sob um manto de geada, tão característico nas manhãs de
Novembro. Os seus habitantes efectuavam rotineiramente as tarefas que lhes
estavam atribuídas. Nada parecia prever que uma má notícia fosse atingir brutal
e profundamente a aldeia.
D. Fernanda já estava saindo com
o seu rebanho de cabras e ovelhas.
Como de costume, levantara-se às
cinco e acendera o lume. Todos os dias realizava mecanicamente as mesmas tarefas,
à mesma hora: acordava antes do galo cantar, preparava-se, bebia uma chávena de
chá, enfiava um pedaço de pão no bolso do casaco para mordiscar pelo caminho e
dirigia-se à loja dos animais. Aí, verificava, meticulosamente, se todos os
animais estavam de saúde, prestando redobrada atenção às prenhas.
De repente, sentiu um frio pelas
costas acima.
Ao longe, alvoraçada, sua irmã
corria a chorar ao seu encontro.
Que desgraça tinha acontecido?!
Lúcia não era mulher para tais algazarras! Algo de muito mau se passava.
*
Acordara com o canto do galo. Aquele som estridente
recordava-lhe a sua terra natal. A esta hora a sua mãe devia estar a
levantar-se. Que disparate! Em Portugal já eram oito horas. Apesar de já estar
há um ano em Moçambique o desfasamento horário ainda lhe pregava algumas
partidas. Este atraso de duas horas ainda contribuía mais para o distanciamento
que parecia querer empurrá-la para longe da sua família. Como gostava de ouvir
a voz da sua mãe... o seu jeito atabalhoado de querer fazer tudo sozinha ...de
andar com ela pelo campo...
Aqui, na Missão
de Fonte Boa, apesar de todo o trabalho que tinha e de sentir que as pessoas
precisavam dela, as saudades apertavam. Sabia que não podia deixar o seu
empreendimento, ainda faltava muito para que o orfanato ficasse pronto.
Tinha decidido
enveredar pela via missionária, apesar de saber que esta decisão não agradara à
sua família. Tentava, agora, recordar os motivos que a tinham empurrado para
tão tortuoso, embora gratificante, caminho.
Tinha passado a sua infância na
aldeia, conjugando a vida escolar com a lida do campo. Sempre gostara de
trabalhar na terra, mas sabia que a agricultura não lhe traria grandes
rendimentos.
Decidira, então, tirar um curso superior.
Sempre fora uma aluna aplicada, o que acabou por lhe garantir a entrada na
Faculdade de Direito em Coimbra. Desde cedo se apercebeu que a vida era muito
mais do que um curso. Procurou algum conforto em comunidades cristãs.
*
Lembrava-se de uma história que tinha lido. Todavia, não
se conseguia lembrar com clareza do seu autor. Teria sido do Paulo Coelho?
Também isso não lhe pareceu importante. Queria apenas sentir que, tal como a
jovem nuvem, a sua vida tinha tido algum significado nesta vida terrena.
Agonizando, tentou reconstituir a história:
«Uma jovem nuvem nasceu no
meio de uma grande tempestade no Mar Mediterrâneo. Mas não teve sequer tempo de
crescer, pois um vento forte empurrou todas as nuvens em direcção à África.
Assim que
chegaram ao continente, o clima mudou: um sol generoso brilhava no céu e, em
baixo, estendia-se a areia dourada do deserto do Saara.
O vento
continuou a empurrar as nuvens em direcção às florestas do sul, já que no
deserto quase não chovia.
Entretanto,
assim como acontece com os jovens humanos, também acontece com as jovens nuvens
_ ela resolveu separar-se dos seus pais e amigos para conhecer o mundo.
_ O que estás
a fazer? _ reclamou o vento _ O deserto é todo igual! Volta para a formação e
vamos até ao centro da África, onde existem montanhas e árvores deslumbrantes!
Mas a jovem
nuvem, rebelde por natureza, não obedeceu. Pouco a pouco foi baixando de
altitude, até conseguir planar numa brisa suave, generosa, perto das areias
douradas.
Depois de
muito passear, reparou que uma das dunas estava a sorrir para ela. Viu que ela
também era jovem, recém-formada pelo vento que acabara de passar. Nesse mesmo
momento, apaixonou-se pela sua cabeleira dourada.
_ Bom dia _
disse ela _ Como é viver aí em baixo?
_ Tenho a
companhia das dunas, do sol, do vento e das caravanas que, de vez em quando,
vão passando por aqui. Ás vezes faz muito calor, mas dá para aguentar. E como é
viver aí em cima?
_ Também
existe o vento e o sol, mas a vantagem é que posso passear pelo céu e conhecer
muita coisa.
_ Para mim a
vida é curta. Quando o vento voltar das florestas irei desaparecer _ disse a
duna.
_ E isso
entristece-te?
_ Dá-me a
impressão de que não sirvo para nada.
_ Eu também
sinto o mesmo. Assim que um novo vento passar irei para o sul e
transformar-me-ei em chuva. Entretanto esse é o meu destino.
A duna hesitou
um pouco, mas terminou dizendo:
_ Sabes, aqui
no deserto nós chamamos a chuva de Paraíso.
_ Eu não sabia
que podia transformar-me em algo tão importante _ disse a nuvem orgulhosa.
_ Já ouvi
várias lendas contadas pelas velhas dunas que dizem que após a chuva nós
ficamos cobertas de ervas e flores. Mas eu nunca saberei o que isso é porque no
deserto chove raramente.
Foi a vez da
nuvem ficar hesitante. Mas, logo em seguida, voltou a mostrar o seu lindo
sorriso:
_ Se quiseres,
eu posso cobrir-te de chuva. Embora tenha acabado de chegar, estou apaixonada
por ti e gostaria de ficar aqui para sempre.
_ Quanto te vi
pela primeira vez no céu, também me enamorei _ disse a duna _ mas se
transformares a tua linda cabeleira branca em chuva, acabarás morrendo.
_ O AMOR nunca
morre. Ele transforma-se. Quero muito mostrar-te o Paraíso _ disse a nuvem.
Começou a
acariciar a duna com pequenas gotas...
E assim
permaneceram juntos por muito tempo, até que o arco-íris apareceu.
No dia
seguinte, a pequena duna estava coberta de flores.
Outras nuvens,
ao passarem em direcção à África, achavam que ali estava parte da floresta que
procuravam e despejavam mais água.
Vinte anos
depois, a duna tinha se transformado num oásis que refrescava os viajantes com
a sombra das suas árvores.
Tudo porque,
um dia, uma nuvem apaixonada não tivera medo de dar a sua vida por causa do
AMOR.»
Com isto fechou os olhos e abraçou a eternidade.
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