sexta-feira, 13 de abril de 2012

Ser Clandestino

No início do século XX, vivia uma mulher muito bela e vistosa de nome Luísa Chaves na pacata aldeia da Cavaca, uma pequeníssima terra pertencente ao concelho de Aguiar da Beira.


Dos vários casamentos que teve, contam-se pelo menos três, nasceram 6 filhos: 4 rapazes e 2 raparigas.

O segundo filho, o António, que viria ao mundo no atribulado ano de1915, desde cedo deu azo à sua teimosia e rebeldia. Habituado às duras labutas da terra, entre o cultivo e a pastagem, enraizou-se na resinagem.

Foi como resineiro que conheceu a sua futura esposa, no concelho de Celorico da Beira. Na época as longas distâncias eram feitas a maior parte das vezes a pé, o que obrigava as pessoas a pernoitarem pelas terras por onde passavam e a permanecerem vários meses nos locais de trabalho.

Estava o jovem desatento a trabalhar perto das Casas do Rio, na Lageosa do Mondego, quando Cupido o atingiu com a sua maravilhosa seta. Foi um raio fulminante, pois nunca mais ele largou a sua Encarnação. Sendo ele pobre, a família da jovem donzela não permitiu o casamento, mas tal não impediu o namoro, apenas o camuflou.

Num certo dia de feira, aproveitando a confusão do ajuntamento propício a esta actividade, António e Encarnação resolveram fugir. Quando deram pela ausência da rapariga, já o jovem casal ia longe, de regresso às terras de Aguiar da Beira.

Começou desta forma a vivência clandestina deste jovem casal que por falta de meios económicos só viria a contrair matrimónio passados 3 anos.

A família e os amigos da Encarnação estavam em profunda consternação, recusando-se a aceitar o sucedido.

Um primo dela, como era músico, imortalizou o acontecimento no seguinte poema que viria a musicar, cantando-o nos momentos de maior tristeza:





No dia 13 de Junho

Um caso se praticou

O António Resineiro

A Encarnação roubou.



O seu irmão quando soube

Sua vida foi chorar

A culpa foi da mãe

Por a deixar abalar



Adeus ó Casas do Rio

Adeus lugar do Sobreiro

Lá fugiu a Encarnação

Com o António Resineiro.





Já não bebemos mais vinho

À saúde da Encarnação

E do António Resineiro

Virou as costas ao Povo

Despediu-se do Sobreiro.





Já nas terras de Aguiar da Beira, o jovem casal lutava contra as amarguras da vida. A miséria em que viviam espelhava-se em todo o Portugal, pois poucos eram os que ganhavam para comer.

Nos anos 30 e 40 as condições económicas e sociais eram miseráveis em todo o país. Apesar da pequena revolução industrial sentida, o povo continuava a passar fome. Este facto acentuou-se com a II Grande Guerra e neste seguimento começou o maior fluxo de emigração de sempre.

António já tinha visto familiares seus emigrarem para o Brasil, inclusive a sua irmã mais velha. Foi tentado em seguir-lhe os passos, mas o amor pelas suas filhas impediu-o.

Para sobreviver, tal como muitos conterrâneos, foi trabalhar para o minério. A jorna era pequena, por isso, pela calada da noite, desviava o minério que podia, sendo depois vendido no mercado negro. Neste negócio “escuro” conheceu intermediários que o aliciaram para outros voos, sempre à margem da lei.

Estávamos nos anos 60, o negócio era conduzir portugueses famintos, à procura de novas oportunidades, para terras mais prósperas. Todos os que podiam emigravam para França, em busca de novos sonhos.

António, acalentando uma vida melhor e sempre na ânsia de obter mais lucros, tornou-se “angariador”. As pessoas procuravam-no para conseguir passar para França. Mas a PIDE não dormia e apertava cada vez mais o cerco junto às fronteiras.

Neste negócio clandestino, António tinha introduzido a sua filha mais nova. Inteligente e determinada, sempre à procura da independência numa época em que as mulheres se assumiam como submissas, com apenas vinte anos, Conceição imiscuiu-se nos meandros que teciam a teia, tornando-se “passadora”. Como mulher conquistou uma larga fasquia do negócio, talvez devido à sua pequena estatura, aos seus lindos cabelos louros e belos olhos azuis que a transfiguravam num anjo, fazendo com que as mulheres e as crianças se sentissem mais confiantes e mais seguras na sua presença. Toda a gente das redondezas recorria a ela, pois nunca falhara o seu alvo. Parecia ser provida de clarividência, pressentindo quando algo de errado se passava e baralhando a polícia.

Em 1969, quando Conceição levava um grupo de pessoas para atravessar a fronteira de Vilar Formoso, foram surpreendidos com tiros disparados pelos “cravineiros”. Todos conseguiram fugir, voltando para trás, mas uma senhora fora atingida, ficando aleijada para sempre. Este episódio viria a atormentar muitas noites da jovem rapariga, mas não lhe tirou a vontade de prosseguir na sua luta.

Apesar do sucedido, António e Conceição continuavam a levar pessoas para França, lutando pelas suas crenças, acreditando que um país opressor nunca seria um grande país, merecedor de pessoas trabalhadoras e leais. Foram várias centenas os que conseguiram chegar ao país desejado, contribuindo de forma significativa para a melhoria das suas condições de vida.

António e Conceição foram presos pela PIDE no final de 1969, ficando na cadeia de Coimbra. Apesar de torturados, nunca denunciaram os companheiros. Saíram, ilibados em 1970, por falta de provas.

Deixaram para trás esta vida de clandestinidade e estabeleceram-se em França. Após vários anos, regressaram a Portugal.

António faleceu em 1990.

Conceição ainda hoje vive em Aguiar da Beira, acreditando num país melhor, sob a bandeira da Democracia.





Agostinha Monteiro