Deixo aqui um pequeno trecho do conto que publiquei nesta antologia como sugestão de leitura:
«Na vila
serena de Aguiar da Beira, onde os dias escorriam lentos ao compasso dos sinos
da igreja e os pardais pareciam murmurar segredos ao vento, erguia-se um banco
de jardim discreto, mas fiel testemunha do passar do tempo. Feito de madeira
gasta e tinta descascada pelo sol e pela chuva, as pessoas gostavam de aí
descansar, sob a sombra acolhedora de um velho plátano. Aquele era o trono
diário do senhor Manuel, um ancião de setenta e nove primaveras, sempre de
chapéu castanho pousado como uma coroa na cabeça, e com um jornal dobrado, mais
por hábito do que por leitura.
Os jovens
passavam por ele com pressa, os olhos mergulhados nos ecrãs e os ouvidos abafados
pelos auscultadores. Os idosos, muitos já desaparecidos ou encerrados nas suas
casas, eram memórias ambulantes que raramente se deixavam ver. Manuel estava
só, mas a solidão não lhe pesava. Observava o mundo em silêncio, escutava o
rumor do tempo e, sobretudo, recordava. Cada folha caída trazia-lhe de volta um
rosto, uma voz, uma rua que já não existia senão na sua memória.
Numa
manhã dourada de outono, Carolina, uma rapariga de catorze anos de olhos
curiosos e passos leves, interrompeu a rotina. Ia a caminho da escola, como
sempre, mas nesse dia algo a fez parar: talvez a forma como o sol repousava
sobre o velho chapéu, ou o semblante sereno de quem guarda segredos ancestrais.
Sentou-se no banco, respeitando a distância, e lançou um tímido "bom
dia".
O senhor Manuel
ergueu os olhos, surpreso, e respondeu com um aceno e um sorriso que parecia
conter uma história inteira. O silêncio entre ambos durou alguns instantes,
entreolharam-se como dois viajantes que se encontram em margens opostas do
mesmo rio. Carolina, levada por um impulso inexplicável, perguntou:
— Gosta
de ler o jornal?
Ele pousou
os olhos sobre o papel, como se o visse pela primeira vez, com a estranheza de
quem reconhece algo que já não lhe pertence inteiramente.
— Leio
menos do que recordo, menina. Há verdades que os jornais jamais saberão narrar.
Carolina
franziu o sobrolho, inclinou ligeiramente a cabeça, curiosa:
— Como
quais?
O senhor Manuel
encostou-se ao encosto do banco, cruzou as mãos sobre o jornal e deixou escapar
um leve suspiro, como se estivesse a abrir uma arca antiga.
— Como o
cheiro a pão quente que saía da padaria do senhor Amândio, às cinco da manhã.
Nenhum jornal alguma vez escreveu sobre isso, mas era esse cheiro que anunciava
o dia à vila, muito antes do sino da igreja. Ou a forma como a minha mãe
assobiava sempre que pendurava a roupa — não era uma melodia conhecida, era só
dela. No entanto, naquele assobio cabia o mundo inteiro.»
(continua...)
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Notag - Edição de Livros de Autor
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