segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Dia fatal


Aqui está o último conto que publiquei.

Dia fatal

*
Ninguém esperava tão trágico acontecimento.
A pequena aldeia de Fontearcadinha acordara sob um manto de geada, tão característico nas manhãs de Novembro. Os seus habitantes efectuavam rotineiramente as tarefas que lhes estavam atribuídas. Nada parecia prever que uma má notícia fosse atingir brutal e profundamente a aldeia.
D. Fernanda já estava saindo com o seu rebanho de cabras e ovelhas.
Como de costume, levantara-se às cinco e acendera o lume. Todos os dias realizava mecanicamente as mesmas tarefas, à mesma hora: acordava antes do galo cantar, preparava-se, bebia uma chávena de chá, enfiava um pedaço de pão no bolso do casaco para mordiscar pelo caminho e dirigia-se à loja dos animais. Aí, verificava, meticulosamente, se todos os animais estavam de saúde, prestando redobrada atenção às prenhas.
De repente, sentiu um frio pelas costas acima.
Ao longe, alvoraçada, sua irmã corria a chorar ao seu encontro.
Que desgraça tinha acontecido?! Lúcia não era mulher para tais algazarras! Algo de muito mau se passava.


*

Acordara com o canto do galo. Aquele som estridente recordava-lhe a sua terra natal. A esta hora a sua mãe devia estar a levantar-se. Que disparate! Em Portugal já eram oito horas. Apesar de já estar há um ano em Moçambique o desfasamento horário ainda lhe pregava algumas partidas. Este atraso de duas horas ainda contribuía mais para o distanciamento que parecia querer empurrá-la para longe da sua família. Como gostava de ouvir a voz da sua mãe... o seu jeito atabalhoado de querer fazer tudo sozinha ...de andar com ela pelo campo...
Aqui, na Missão de Fonte Boa, apesar de todo o trabalho que tinha e de sentir que as pessoas precisavam dela, as saudades apertavam. Sabia que não podia deixar o seu empreendimento, ainda faltava muito para que o orfanato ficasse pronto.
Tinha decidido enveredar pela via missionária, apesar de saber que esta decisão não agradara à sua família. Tentava, agora, recordar os motivos que a tinham empurrado para tão tortuoso, embora gratificante, caminho.
Tinha passado a sua infância na aldeia, conjugando a vida escolar com a lida do campo. Sempre gostara de trabalhar na terra, mas sabia que a agricultura não lhe traria grandes rendimentos.
 Decidira, então, tirar um curso superior. Sempre fora uma aluna aplicada, o que acabou por lhe garantir a entrada na Faculdade de Direito em Coimbra. Desde cedo se apercebeu que a vida era muito mais do que um curso. Procurou algum conforto em comunidades cristãs.

*

Lembrava-se de uma história que tinha lido. Todavia, não se conseguia lembrar com clareza do seu autor. Teria sido do Paulo Coelho? Também isso não lhe pareceu importante. Queria apenas sentir que, tal como a jovem nuvem, a sua vida tinha tido algum significado nesta vida terrena. Agonizando, tentou reconstituir a história:
«Uma jovem nuvem nasceu no meio de uma grande tempestade no Mar Mediterrâneo. Mas não teve sequer tempo de crescer, pois um vento forte empurrou todas as nuvens em direcção à África.
Assim que chegaram ao continente, o clima mudou: um sol generoso brilhava no céu e, em baixo, estendia-se a areia dourada do deserto do Saara.
O vento continuou a empurrar as nuvens em direcção às florestas do sul, já que no deserto quase não chovia.
Entretanto, assim como acontece com os jovens humanos, também acontece com as jovens nuvens _ ela resolveu separar-se dos seus pais e amigos para conhecer o mundo.
_ O que estás a fazer? _ reclamou o vento _ O deserto é todo igual! Volta para a formação e vamos até ao centro da África, onde existem montanhas e árvores deslumbrantes!
Mas a jovem nuvem, rebelde por natureza, não obedeceu. Pouco a pouco foi baixando de altitude, até conseguir planar numa brisa suave, generosa, perto das areias douradas.
Depois de muito passear, reparou que uma das dunas estava a sorrir para ela. Viu que ela também era jovem, recém-formada pelo vento que acabara de passar. Nesse mesmo momento, apaixonou-se pela sua cabeleira dourada.
_ Bom dia _ disse ela  _ Como é viver aí em baixo?
_ Tenho a companhia das dunas, do sol, do vento e das caravanas que, de vez em quando, vão passando por aqui. Ás vezes faz muito calor, mas dá para aguentar. E como é viver aí em cima?
_ Também existe o vento e o sol, mas a vantagem é que posso passear pelo céu e conhecer muita coisa.
_ Para mim a vida é curta. Quando o vento voltar das florestas irei desaparecer _ disse a duna.
_ E isso entristece-te?
_ Dá-me a impressão de que não sirvo para nada.
_ Eu também sinto o mesmo. Assim que um novo vento passar irei para o sul e transformar-me-ei em chuva. Entretanto esse é o meu destino.
A duna hesitou um pouco, mas terminou dizendo:
_ Sabes, aqui no deserto nós chamamos a chuva de Paraíso.
_ Eu não sabia que podia transformar-me em algo tão importante _ disse a nuvem orgulhosa.
_ Já ouvi várias lendas contadas pelas velhas dunas que dizem que após a chuva nós ficamos cobertas de ervas e flores. Mas eu nunca saberei o que isso é porque no deserto chove raramente.
Foi a vez da nuvem ficar hesitante. Mas, logo em seguida, voltou a mostrar o seu lindo sorriso:
_ Se quiseres, eu posso cobrir-te de chuva. Embora tenha acabado de chegar, estou apaixonada por ti e gostaria de ficar aqui para sempre.
_ Quanto te vi pela primeira vez no céu, também me enamorei _ disse a duna _ mas se transformares a tua linda cabeleira branca em chuva, acabarás morrendo.
_ O AMOR nunca morre. Ele transforma-se. Quero muito mostrar-te o Paraíso _ disse a nuvem.
Começou a acariciar a duna com pequenas gotas...
E assim permaneceram juntos por muito tempo, até que o arco-íris apareceu.
No dia seguinte, a pequena duna estava coberta de flores.
Outras nuvens, ao passarem em direcção à África, achavam que ali estava parte da floresta que procuravam e despejavam mais água.
Vinte anos depois, a duna tinha se transformado num oásis que refrescava os viajantes com a sombra das suas árvores.
Tudo porque, um dia, uma nuvem apaixonada não tivera medo de dar a sua vida por causa do AMOR.»


Com isto fechou os olhos e abraçou a eternidade.