terça-feira, 2 de setembro de 2025

"Amor traiçoeiro", de António Carvalho, no livro _Porto, uma cidade com alma.

 

Destaco aqui outro conto da coletânea Porto, uma cidade com alma, da Chiado books


Amor traiçoeiro

 

Chegado à Ribeira do Porto, lá estava ela toda lustrosa e sorridente, à sua espera, na borda do cais dos Guindais. Eva assim costumava proceder, duas ou três vezes por semana, logo que divisasse o barco de Abel, ao longe, carregado de carqueja ou carvão de choça.

Eva agenciava as carquejeiras que Abel lhe solicitava, as quais carregavam, desde os Guindais até à cota alta da cidade, penosamente, pela calçada da Corticeira acima, feixes de carqueja de duas ou três arrobas, mais volumosos que o seu próprio corpo.

Abel, em 1944, era um fornecedor de carqueja, lenhas de diversa natureza, madeiras e carvão de choça, à cidade do Porto. Conquanto houvesse já uma estrada de ligação entre a sua freguesia de Emendadas e a cidade, continuava a ser economicamente mais favorável o transporte dessa matéria prima, por barco, especialmente quando provinha da área florestal marginal ao rio. Era um barco de carga, algo semelhante ao rabelo, o qual se designava por rabão.

Em 19 de Junho desse ano, Abel, então com 44 anos, fazia mais uma das suas inúmeras viagens, entre a sua freguesia de Emendadas e a cidade do Porto, empoleirado na proa do seu rabão. Governavam a embarcação três tripulantes. Um deles, o que se encarregava da espadela, mais velho, por isso mais afoito, espicaçou Abel, ultimamente muito introvertido e tristonho:

- Ó Ti Abel, você vai aí a cismar… não cisme homem! Quando chegar ao Porto, lá tem a carquejeira à sua espera !

Abel, olhando à consideração que tinha por aquele tripulante, aceitou-lhe a ousadia, coisa que não aceitaria de nenhum dos outros, porém, achou dever corrigi-lo, nestes termos:

-Sabes Delfim, desde que me morreu a minha, só penso nos meus dois filhinhos órfãos de mãe, cuidados por tias. E a Eva não é nenhuma carquejeira, até é uma senhora muito bem posta.

Abel, na verdade, desde que lhe morrera a esposa, do parto distócico do segundo filho, intermediava a sua solidão com noites de encantamento desabrido nos braços da espevitada Eva, numa casinha que tinha numa ilha das Fontainhas. Por isso não tinha gostado que Delfim a apodasse de carquejeira, mulher pobre, sem eira nem beira. Eva não era nenhuma carrejona, sabia ler, escrever e apontar, num livrinho de capas pretas, as cargas que cada carquejeira transportava. Ademais, alfaiava-se como uma senhora da cidade, no modo como se vestia e calçava e até como empinava o nariz.

Chegado ao Porto, Abel, logo que o seu rabão encostou ao cais, saiu borda fora, ao encontro de Eva que o esperava ansiosa. Nos últimos minutos que precederam o seu desembarque tinha feito as últimas recomendações ao Delfim, enquanto dava uns retoques no cabelo desalinhado pela brisa do rio, guiado por um pequeno espelho redondo que ultimamente trazia sempre consigo, no bolso do casaco de onde tirara o pente. Seguiram ambos de braço dado, na direção da estação de S. Bento, parando junto de um dos engraxadores que pregoavam o seu serviço em clara competição. Abel, desde que enviuvara, tornara-se mais vaidoso, e não entrava na casa de Eva sem dar aos sapatos uma cara nova.

Cuidadosamente escondidos no forro do casaco, levava quinze contos, para sinalizar um grande negócio de lenha em Avintes. Esperá-lo-ia, no dia seguinte, o vendedor, na freguesia do outro lado do rio, alguns quilómetros a montante do Porto. Seria o maior negócio de sempre, o mais rendoso de todos, para Abel, se se consumasse.

Tinham dado a volta por S. Bento, Rua de S. António e Praça da Batalha, numa estratégia engendrada por Eva, visando conseguir de Abel a oferta de alguma peça da moda. Mas Abel, que trazia o dinheiro contado para o negócio, resistiu à tentação. Ademais precisava de lhe juntar tanto quanto o que trazia para perfazer a quantia do sinal estabelecido. Que se contivesse, porque se o negócio lhe corresse bem, nada lhe faltaria.

Eva não era de desistir à primeira recusa. Havia de o tentar de novo, logo que entrassem na sua modesta mas asseada casinha da ilha. Aí, como quase sempre acontecia, havia de lhe quebrar o bom senso, quando o levasse ao zénite da sofreguidão sexual.

Mal transpuseram a porta da casa, fecharam-na como se fugissem de alguém e logo se sentaram no bordo da cama de ferro, que outro sítio não havia onde ambos coubessem. A casa, uma das que compunham a fileira de sete justapostas, limitava-se ao espaço do quarto separado da acanhada cozinha por um tabique de fasquio.

Eva, abraçada a Abel, achou que aquele era o momento de jogar as cartas todas. Não se lhe entregou plenamente, preferiu conter-lhe a volúpia ao mesmo tempo que, de rádio ligado, criava uma atmosfera festiva dentro do quarto. Enquanto o abraçava sentiu que Abel trazia escondido no forro do casaco uma grande quantidade de papéis que seria, por certo, dinheiro, muito dinheiro. Eva não resistiu a pedir-lhe um aumento da mesada, pois o que lhe vinha a dar não chegava a nada. Abel, olhava à volta, descoroçoado. Afinal, Eva, que ele julgava poder vir a substituir a falecida mãe de seus filhos, só lhe cobiçava o dinheiro. Pior, ela sabia, agora que ele trazia consigo muito dinheiro, aliás, sabia do grande negócio que ele tinha acordado com um lavrador de Avintes…

Não terminara ali, sob o peso da desconfiança, apenas a vontade de uma noite de corpos cruzados. Descruzaram-se em absoluto as vidas de ambos. Abel bateu a porta como se receasse que ela, agora já uma cobra, viesse no seu encalço. Tinha-lhe pago a instalação de telefone em casa e lembrou-se que deveria correr para apanhar a carreira para Avintes, antes que ela telefonasse a algum tratante para o assaltar.

No dia 23 de junho, os jornais  diários do Porto davam conta de que já tinha sido identificado o cadáver encontrado na Praia da Escócia, em Avintes. Era o corpo de Abel morto com um tiro de caçadeira, despojado de identificação e do dinheiro que pretendia levar ao lavrador de Avintes.

 

 


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