Destaco aqui outro conto da coletânea Porto, uma cidade com alma, da Chiado books
Amor traiçoeiro
Chegado à Ribeira do Porto, lá estava ela toda lustrosa e
sorridente, à sua espera, na borda do cais dos Guindais. Eva assim costumava
proceder, duas ou três vezes por semana, logo que divisasse o barco de Abel, ao
longe, carregado de carqueja ou carvão de choça.
Eva agenciava as carquejeiras que Abel lhe solicitava, as
quais carregavam, desde os Guindais até à cota alta da cidade, penosamente, pela
calçada da Corticeira acima, feixes de carqueja de duas ou três arrobas, mais
volumosos que o seu próprio corpo.
Abel, em 1944, era um fornecedor de carqueja, lenhas de
diversa natureza, madeiras e carvão de choça, à cidade do Porto. Conquanto
houvesse já uma estrada de ligação entre a sua freguesia de Emendadas e a
cidade, continuava a ser economicamente mais favorável o transporte dessa
matéria prima, por barco, especialmente quando provinha da área florestal
marginal ao rio. Era um barco de carga, algo semelhante ao rabelo, o qual se
designava por rabão.
Em 19 de Junho desse ano, Abel, então com 44 anos, fazia mais
uma das suas inúmeras viagens, entre a sua freguesia de Emendadas e a cidade do
Porto, empoleirado na proa do seu rabão. Governavam a embarcação três
tripulantes. Um deles, o que se encarregava da espadela, mais velho, por isso
mais afoito, espicaçou Abel, ultimamente muito introvertido e tristonho:
- Ó Ti Abel, você vai aí a cismar… não cisme homem! Quando
chegar ao Porto, lá tem a carquejeira à sua espera !
Abel, olhando à consideração que tinha por aquele tripulante,
aceitou-lhe a ousadia, coisa que não aceitaria de nenhum dos outros, porém,
achou dever corrigi-lo, nestes termos:
-Sabes Delfim, desde que me morreu a minha, só penso nos meus
dois filhinhos órfãos de mãe, cuidados por tias. E a Eva não é nenhuma
carquejeira, até é uma senhora muito bem posta.
Abel, na verdade, desde que lhe morrera a esposa, do parto
distócico do segundo filho, intermediava a sua solidão com noites de
encantamento desabrido nos braços da espevitada Eva, numa casinha que tinha
numa ilha das Fontainhas. Por isso não tinha gostado que Delfim a apodasse de
carquejeira, mulher pobre, sem eira nem beira. Eva não era nenhuma carrejona,
sabia ler, escrever e apontar, num livrinho de capas pretas, as cargas que cada
carquejeira transportava. Ademais, alfaiava-se como uma senhora da cidade, no
modo como se vestia e calçava e até como empinava o nariz.
Chegado ao Porto, Abel, logo que o seu rabão encostou ao
cais, saiu borda fora, ao encontro de Eva que o esperava ansiosa. Nos últimos
minutos que precederam o seu desembarque tinha feito as últimas recomendações
ao Delfim, enquanto dava uns retoques no cabelo desalinhado pela brisa do rio,
guiado por um pequeno espelho redondo que ultimamente trazia sempre consigo, no
bolso do casaco de onde tirara o pente. Seguiram ambos de braço dado, na direção
da estação de S. Bento, parando junto de um dos engraxadores que pregoavam o
seu serviço em clara competição. Abel, desde que enviuvara, tornara-se mais
vaidoso, e não entrava na casa de Eva sem dar aos sapatos uma cara nova.
Cuidadosamente escondidos no forro do casaco, levava quinze
contos, para sinalizar um grande negócio de lenha em Avintes. Esperá-lo-ia, no
dia seguinte, o vendedor, na freguesia do outro lado do rio, alguns quilómetros
a montante do Porto. Seria o maior negócio de sempre, o mais rendoso de todos,
para Abel, se se consumasse.
Tinham dado a volta por S. Bento, Rua de S. António e Praça
da Batalha, numa estratégia engendrada por Eva, visando conseguir de Abel a oferta
de alguma peça da moda. Mas Abel, que trazia o dinheiro contado para o negócio,
resistiu à tentação. Ademais precisava de lhe juntar tanto quanto o que trazia
para perfazer a quantia do sinal estabelecido. Que se contivesse, porque se o
negócio lhe corresse bem, nada lhe faltaria.
Eva não era de desistir à primeira recusa. Havia de o tentar
de novo, logo que entrassem na sua modesta mas asseada casinha da ilha. Aí,
como quase sempre acontecia, havia de lhe quebrar o bom senso, quando o levasse
ao zénite da sofreguidão sexual.
Mal transpuseram a porta da casa, fecharam-na como se
fugissem de alguém e logo se sentaram no bordo da cama de ferro, que outro
sítio não havia onde ambos coubessem. A casa, uma das que compunham a fileira
de sete justapostas, limitava-se ao espaço do quarto separado da acanhada
cozinha por um tabique de fasquio.
Eva, abraçada a Abel, achou que aquele era o momento de jogar
as cartas todas. Não se lhe entregou plenamente, preferiu conter-lhe a volúpia
ao mesmo tempo que, de rádio ligado, criava uma atmosfera festiva dentro do
quarto. Enquanto o abraçava sentiu que Abel trazia escondido no forro do casaco
uma grande quantidade de papéis que seria, por certo, dinheiro, muito dinheiro.
Eva não resistiu a pedir-lhe um aumento da mesada, pois o que lhe vinha a dar
não chegava a nada. Abel, olhava à volta, descoroçoado. Afinal, Eva, que ele
julgava poder vir a substituir a falecida mãe de seus filhos, só lhe cobiçava o
dinheiro. Pior, ela sabia, agora que ele trazia consigo muito dinheiro, aliás,
sabia do grande negócio que ele tinha acordado com um lavrador de Avintes…
Não terminara ali, sob o peso da desconfiança, apenas a
vontade de uma noite de corpos cruzados. Descruzaram-se em absoluto as vidas de
ambos. Abel bateu a porta como se receasse que ela, agora já uma cobra, viesse
no seu encalço. Tinha-lhe pago a instalação de telefone em casa e lembrou-se
que deveria correr para apanhar a carreira para Avintes, antes que ela
telefonasse a algum tratante para o assaltar.
No dia 23 de junho, os jornais diários do Porto davam conta de que já tinha
sido identificado o cadáver encontrado na Praia da Escócia, em Avintes. Era o
corpo de Abel morto com um tiro de caçadeira, despojado de identificação e do
dinheiro que pretendia levar ao lavrador de Avintes.