quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A linha invisível

 



A Linha Invisível


    O sol nascente tingia de âmbar as colinas ondulantes que separavam Portugal de Espanha.

    Naquela «terra de ninguém», onde os carvalhos se curvavam ao vento e os ribeiros sussurravam

segredos antigos, dois homens caminhavam em silêncio.

    António, um contrabandista experiente, conhecia cada vereda e cada sombra da serra. Os

seus olhos, endurecidos pelo tempo, fitavam o horizonte com desconfiança. Ao seu lado, Manuel,

um jovem idealista, carregava uma mochila repleta de panfletos revolucionários e sonhos de

liberdade.

    «A fronteira não é apenas uma linha no mapa,» murmurou António, quebrando o silêncio.

    «É uma ferida aberta,» respondeu Manuel, «uma cicatriz que separa irmãos e histórias.»

    Caminharam durante horas, atravessando vales e escalando encostas, até alcançarem o

marco de pedra que assinalava a divisão entre os dois países. Ali, sob o céu vasto e indiferente,

pararam.

    «Daqui em diante, estás por tua conta,» disse António, entregando a Manuel um mapa e

um aperto de mão firme.

    Manuel assentiu, os olhos brilhando com determinação. «Obrigado, António. Pela ajuda...

e pela esperança.»

    Naquela manhã, sob o céu que não reconhecia nações, dois homens cruzaram uma linha

invisível, cada um carregando consigo o peso e a promessa de um mundo sem fronteiras.

Enquanto Manuel desaparecia entre as árvores do lado espanhol, António permaneceu

imóvel, observando. Sabia que, embora as fronteiras pudessem ser atravessadas fisicamente, as

verdadeiras barreiras residiam nos corações e nas mentes das pessoas.

    António, ali parado, recordava as histórias dos que, como Manuel, haviam deixado para

trás tudo o que conheciam em busca de uma vida melhor. Pensava no que significava ser

«imigrante», no seu contributo para a economia, preenchendo lacunas no mercado de trabalho e

trazendo inovação através do empreendedorismo. Refletia também sobre a riqueza cultural que a

migração proporcionava: a diversidade de línguas, as tradições e as perspetivas que enriqueciam

a sociedade. Percebia que, ao abraçar a diversidade, se construía uma sociedade mais inclusiva e

mais tolerante. E também ele sonhava com a liberdade.

    Com um suspiro, António virou-se e iniciou o caminho de volta. Sabia que, embora as

fronteiras físicas pudessem ser ultrapassadas, era nas atitudes e nas políticas que se encontravam

os verdadeiros desafios. No entanto, também sabia que, com compreensão e empatia, era possível

construir pontes onde antes havia muros.

    Naquele momento, António compreendeu que cada passo dado em direção à aceitação e

à inclusão era um passo rumo a um mundo mais justo e solidário.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Poema «A memória», participação no XXVI Concurso Agostinho Gomes.

 


A memória

A memória é um fio,
que se tece em silêncio
entre os dedos do tempo.

É o nome murmurado
numa rua antiga,
a sopa que ferve
na panela da infância,
o cheiro da terra molhada
quando corríamos descalços.

A memória é uma casa
sem paredes nem fechaduras,
onde cabem os que já partiram
e os risos que ainda ecoam.

É vela acesa
no escuro do presente,
bússola secreta
nos mapas do coração.

Guarda em si
o que os dias não dizem,
o que os livros não sabem,
o que os olhos esquecem.

E quando tudo parece ruir,
vem a memória — suave, fiel —
sentar-se connosco no banco do tempo,
e dizer baixinho:
Não estás só, ainda te lembras.